data-filename="retriever" style="width: 100%;">Há cerca de uns 40 anos ou mais, fui a Porto Alegre numa cabine dupla de vagão-leito pelo chamado "trem noturno" de em companhia de um colega professor da UFSM. Íamos para um congresso na capital representando os nossos departamentos. Rapidamente pegamos no sono com aquele "telec-telec", ruído característico do rodado do trem sobre os trilhos e mais o embalo da composição.
Horas depois, nos acordamos e o trem estava parado. Imaginamos que estivesse parado numa estação para pegar novos passageiros ou desembarcar outros. Mas a como a demora estava muito inquietante e se ouviam rumores nos corredores do vagão, abrimos a porta para saciar a curiosidade. E ficamos sabendo da terrível notícia através do "chefe de trem" : alguns quilômetros adiante um trem havia descarrilado e nós estávamos sem saber que horas chegar a Porto Alegre. Com o trem parado num lugar ermo, presos no meio do campo.
Imediatamente, convidei meu companheiro de viagem para ir ao carro-restaurante tomar café, comer um bife com dois ovos, tomar um suco para enfrentar a demora pois a equipe de socorro para desobstruir a composição acidentada teria de vir de Porto Alegre. Quando chegamos ao carro-restaurante constamos o óbvio: todos tiveram a mesma ideia. E não havia para nós nenhuma uma desgraçada fatia de pão torrado ou uma minguada bolacha-maria.
Fomos chegar a Porto Alegre às 15 horas. Cansados. Suados. Quase desmaiando de fome. Senti na própria carne as sensações fisiológicas da fome.
Passei a estudar e a ler tudo sobre a fome. Li toda a obra do Josué de Castro. Passei a falar em aula sobre a geopolítica da fome. A Geografia da Fome. A Biologia Social. A fome endêmica. Obreas ideias de Malthus.
Resolvi escrever a respeito desse episódio do trem ocorrido comigo porque fico com o coração partido quando vejo na TV as entrevistas das famílias que não têm o que comer. São milhões de brasileiros que, pelas mais diversas razões - pandemia, desemprego, políticas sociais, desigualdade, etc - estão com suas geladeiras e armários vazios.
Não tenho posses, nem cargo, nem poder. Tenho apenas sensibilidade. E já há bastante tempo eu e minha mulher temos uma pessoa carente que fica nas ruas centrais da cidade para a qual dedicamos atenção na doação de roupas, medicamentos, lanches, amizade, aconselhamento.
E, de uns meses para cá, compramos embalagens descartáveis no supermercado, com divisórias, tipo "bandejão", onde colocamos arroz, feijão, carne, salada, uma fruta - enfim - a mesma comida nossa - e diariamente depois do meio-dia ficamos ao lado do contêiner da Venâncio Aires, em frente à Galeria do Comércio, onde sempre tem alguém esperando aquela marmita. Uma só por dia, mas é o que podemos dar. Comida boa, higienizada, com uma garrafinha plástica de água.
Por favor, não quero bancar o caridoso, o generoso, o salvador, o bonzinho. Minha mulher nem queria que eu escrevesse essa crônica. Mas eu me arrisco à crítica porque eu sou teimoso. Resolvi escrever para convocar o leitor a fazer algo semelhante. Porque em quase todas as casas sobra comida. Que acaba indo para o lixo. Enquanto existe gente passando fome. E fome dói. Machuca. Deprime. Deixa humilhado.
Vamos ajudar ?
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